Carcaças de animais são recursos alimentares utilizados por uma ampla variedade de seres vivos, incluindo espécies de microorganismos (p. ex. bactérias e fungos), de invertebrados (p. ex. insetos) e de vertebrados (p. ex. aves e mamíferos). Entre os vertebrados necrófagos, os urubus são os únicos que possuem uma dieta composta quase que exclusivamente de carcaças ou carniça. Eles compõem o grupo de aves de rapina diurnas que se alimentam primariamente de animais mortos. Ainda que aconteça raramente e de forma oportunista, as espécies de urubus podem predar animais vivos que estejam fracos ou impedidos de fugir, e ainda alimentar-se de frutos de macaúba ou dendê.
Conta Ruy Castro, em O Vermelho e o Negro (2001), que o urubu, pela torcida do Flamengo, foi elevado à condição de mascote a partir de um episódio desconcertante. Até a década de 1960, o mascote do clube era o Popeye, uma clara referência aos primórdios náuticos do clube, mas que naquele momento já não fazia tanto sentido para o torcedor apaixonado pelo futebol rubro-negro. O “racismo estrutural” (Silvio Almeida, 2018) ou o “fascismo da cor” (Muniz Sodré, 2023), como queiram, entraram em campo quando as torcidas rivais de Botafogo, Vasco da Gama e Fluminense ecoavam um grito – “Urubu! Urubu! Urubu!” – com o objetivo racista de constranger o torcedor rubro-negro, fazendo alusão sobre a cor da ave e a cor da pele da maioria dos torcedores flamenguistas.
Cansados com as atitudes racistas dos rivais, os torcedores tiveram a ideia de calar a torcida adversária levando um urubu ao Maracanã, que entrou enrolado nas bandeiras. O animal foi arremessado ao voo com uma bandeira rubro-negra amarrada em suas patas, sobrevoou o estádio e pousou elegantemente no gramado. Nascia assim um dos mascotes mais representativos de um clube brasileiro. Isso aconteceu no dia 1º. de junho de 1969, quando o Flamengo enfrentou o Botafogo pelo Campeonato Carioca. É bem verdade que não só de glórias vive a nação rubro-negra, conforme relativiza Djavan na canção Boa noite (1992):
“Meu ar de dominador/Dizia que eu ia ser seu dono/E nessa eu dancei!/Hoje no universo/Nada que brilha cega mais que seu nome/Fiquei mudo ao lhe conhecer/O que vi foi demais, vazou/Por toda selva do meu ser/Nada ficou intacto/Na fronteira de um oásis/Meu coração em paz, se abalou/É surpresas demais que trazes/’Inda bem que eu sou Flamengo/Mesmo quando ele não vai bem/Algo me diz em rubro-negro/Que o sofrimento leva além/Não existe amor sem medo/Boa noite!/Quem não tem pra quem se dar/O dia é igual à noite/Tempo parado no ar, há dias/Calor, insônia/Ô noite!/Quem ama vive a sonhar de dia/Voar é do homem/Vida foi feita pra estar em dia/Com a fome, com a fome, com a fome/Se vens lá das alturas com agruras ou paz/Oh, meu bem, serei seu guia na terra/Na guerra ou no sossego sua beleza é o cais/E eu sou o homem/Que pode lhe dar, além de calor, fidelidade/Minha vida por inteiro eu lhe dou/Minha vida por inteiro eu lhe dou/Minha vida por inteiro eu lhe dou”.
No dia oito de fevereiro de 2019, por volta das 5h00, ocorreu um incêndio em decorrência de um curto-circuito em um ar-condicionado no Centro de Treinamento do Flamengo, conhecido como Ninho do Urubu. O incêndio atingiu o alojamento da categoria de base do time de futebol, que abrigava atletas entre 14 e 17 anos, sendo que 10 adolescentes morreram. O Flamengo não tinha licenças e alvarás da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros para construir os alojamentos no Centro de Treinamento. Nesse sentido, foram aplicadas 31 multas pela Prefeitura e o alvará de funcionamento não havia sido emitido, pois o Certificado de Aprovação do Corpo de Bombeiros não foi apresentado pelo clube. Em 20/10/2017, a Prefeitura do Rio emitiu ainda um edital de interdição que não foi respeitado. Nesse caso, ganha contornos necropolíticos a despreocupação à vida.
Com a banalização da violência dirigida ao outro e da morte, o Brasil tornou-se um gigantesco “Ninho do Urubu”. Camila Prando, em Dicionário de palavras subterrâneas (2021), compõe uma história chocante: “Ela voava como um urubu. Um voo alto, nublado e oblíquo. Os olhos atentos à caça, em um corpo leve e alado, suspenso no ar. A menina farejava o cheio da morte se preparando para devorar sua carne”. Conforme frisaram João do Vale (1934-1996) e José Cândido (1927-2008), autores da canção Carcará (1964), a alusão à ave sertaneja que resiste ao calor e à seca do sertão faz pensar no povo nordestino que sobrevive aos obstáculos impostos pela natureza e intensificados pelo descaso dos governos. Comedor de carniça assim como os urubus, o carcará descrito na música como malvado e valentão, que “pega, mata e come”, pode ser associado alegoricamente à ditadura recém-instaurada no país.
Não à toa, a Nação Carcará vive sobressaltada quanto ao seu futuro diante de um ambiente global, volátil, incerto, complexo e ambíguo. A percepção de que as estruturas democráticas, ao desconsiderar as diversas racionalidades e núcleos de identidade orientados para o convívio antagônico na esfera pública, diante das significativas diferenças em relação ao conteúdo e à interpretação de questões morais e políticas em sociedades complexas e desiguais, permite que determinadas assimetrias institucionais levem à consequente quebra de integridade do sistema político e social, especialmente diante da necessidade de garantia de participação de grupos minoritários. Assim, em uma realidade na qual a atuação das instituições democráticas é meramente simbólica na construção de parâmetros democráticos, um sistema de crenças políticas e sociais, em um quadro em que a realidade social não corresponde a determinados padrões caracterizados como essenciais, a democracia acaba por, paulatinamente, ser debilitada, com uma clara falha institucional no enfretamento de problemas de não realização social.
* Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG). Poeta, professor autônomo e pesquisador independente. Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).