Acrescentamos, ao tradicional patrimônio material, de pedra e cal, o patrimônio imaterial, dos saberes e fazeres. O vetor básico da Constituição Federal (CF) de 1988 foi a ampliação da cidadania. O acesso de todos os brasileiros a todos os direitos e deveres. Foi a cidadania plena. A CF foi, é, e deve ser o comando da ampliação do Brasil. O que nos faz eternos são nossos pertencimentos, sínteses, sincretismos, mestiçagens, diversidades raciais, sexuais, religiosas, musicais, ideológicas, literárias ou quaisquer outras. A cultura brasileira não é eliminatória. É somatória, dizia Aloísio Magalhães (1927-1982).
Sabemos que foi no oco das cavernas que o ser humano começou a pintar. Não lhe bastou caçar, pescar, dormir e copular. Era preciso criar. Criando, inventou a escrita e a linguagem, produziu utensílios, religião, ciência e tecnologia. A tudo isso, que nasceu do “bolsão da invenção”, chamamos de cultura. A arte é capaz de coisas incríveis. A dupla sertaneja Bruno & Marrone conseguiu a proeza de colocar amor e humor na pauta da segurança pública: “Eu caminhei sozinho pela rua/Falei com as estrelas e com a lua/Deitei no banco da praça/Tentando te esquecer/Adormeci e sonhei com você/No sonho, você veio provocante/Me deu um beijo doce e me abraçou/E bem na hora H no ponto alto do amor/Já era dia o guarda me abordou/Seu guarda, eu não sou vagabundo/Eu não sou delinquente, sou um cara carente/Eu dormi na praça pensando nela/Seu guarda, seja meu amigo/Me bata, me prenda, faça tudo comigo/Mas não me deixe ficar sem ela” (Dormi na praça, 1994).
Nem sempre convém brincar com fogo, ainda mais em um mundo tão beligerante. Sugiro, então, a leitura de Lacrimogêneo (Ponta de Lança, 2022), escrito pelo educador e trabalhador policial Fernando Lopes. Suas narrativas investem esperança na articulação possível entre ciência policial, pedagogia da cooperação e promoção dos direitos humanos. O escritor encontrou maior realização pessoal e profissional, enquanto esteve atuando na Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid). Em conversa com o autor e registrando meu profundo apreço por ele, incluindo seu empenho trabalhista e labor literário, fiz questão de externar algumas palavras como quarta capa do livro em questão. São elas:
“O policial dos meus sonhos se atira em livros. E atinge, com cuidado, os dilemas mais sutis e substantivos. Ele é real, existe, acontece. Atende pelo nome de Fernando Lopes. Anjo da guarda da defesa, munido de palavras, ele muito bem nos escuta. Liberdade e segurança podem se entender? Vigiar e cuidar podem se encontrar? Brigar ou abrigar, eis a questão. Expressando como ninguém o corre da luta, Lacrimogêneo abre suas páginas e revela uma poesia feita de peito aberto. Fernando Lopes, com sua notável consciência ética, estética e política, discorre sobre tempos e temperamentos explosivos. Porém, com um tipo de fogo encantado, ele ainda nos faz acreditar que podemos, com o estado de poesia, combater o estado de exceção ainda vigente no mundo”.
As trevas e a calamidade que recaem sobre os sistemas de segurança pública constituem um paradoxo inaceitável. De um lado, a Receita Federal e as Secretarias de Fazenda Estaduais e Municipais adotam controles instantâneos. De outro, a segurança pública alicerça-se no pega-pega, com poucos recursos e baixos salários, ao contrário da arrecadação e da fiscalização, com bons recursos e bons salários. Parece que a modernidade vale para arrecadar, mas não para proteger. Proteção virou luxo. Shakespeare (1564-1616) já nos advertia: quanto mais escondemos um sentimento, mais o revelamos! É na obscuridade que os monstros crescem. Freud (1856-1939), na trilha do poeta, questiona em seu texto trágico, O mal-estar na cultura (1930), a vocação do homem em “satisfazer no outro a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, infligir-lhe dores e assassiná-lo”. Essa relação hostil com o outro traduz a maior fonte de sofrimento humano.
Sábios foram os gregos que, na Antiguidade, quando inventaram a cidade, colocaram a barbárie em cena, no teatro, e, assim, encontraram um lugar para ela na vida pública, de maneira a que produzisse o menor dano possível. Não estará aí uma das fórmulas? A criação, a invenção, a arte são modos de reconhecermos os horrores que nos habitam, como o ódio e o destempero, dando-lhes uma expressão palatável, e mesmo admirável, na cultura. Possibilitam uma espécie de purgação do horror. Nesse sentido, arte é medida de segurança pública. Promover meios para incitar a criação é trabalhar a favor dos processos de humanização.
Façamos como os gregos, que, antes da força bélica de Roma fazer prosperar seu império com a lógica da devastação, usaram como arma não propriamente a força, mas a astúcia. Hoje, infelizmente, estamos sentindo na pele os danos causados pela junção de pandemia, políticas públicas ineficientes ou insuficientes, armas em circulação, um tanto de gente a descumprir regras mínimas de respeito ao outro, necessárias à boa convivência em sociedade. A lógica da força bruta prepondera; o poder público continua deixando órfãos o centro e, principalmente, a periferia. Precisamos de medidas efetivas que drenem o excesso da barbárie produzida pela sociedade contemporânea. Saneamento, saúde e educação básica são imprescindíveis. O acesso à arte é igualmente vital aos processos de reconstrução do espaço social.
* Professor nas Faculdades Promove de Sete Lagoas (2005-2009), Fortium (2013) e JK (2013-2020). Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.